Darkness in El Dorado Controversy - Archived Document


Internet Source: ?, September 20, 2000
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Antropologia selvagem

Quase tudo o que o mundo pensa dos Ianomami deve ao antropólogo Napoleon Chagnon, que os estudou nas selvas da Venezuela por mais de 35 anos. A partir da semana que vem, o que o mundo pensará de Chagnon vai ficar devendo ao jornalista Patrick Tierney. Em livro que está a caminho das livrarias nos Estados Unidos, ele conta que o antropólogo, durante a pesquisa, fez turismo sexual com as adolescentes da tribo, provocou guerras entre suas aldeias para animar um documentário sobre seus combates, traficou com políticos venezuelanos licenças de mineração para explorar ouro em território indígena e estimulou entre eles uma experiência de limpeza étnica que, usando vacinas contra-indicadas para populações sem contato anterior com a doença, dizimou os ianomami numa epidemia de sarampo provocada por erro médico.

O livro de Tierney, Darkness in El Dorado - ou seja, "Treva no Eldorado" sai nos Estados Unidos em outubro. Mas suas ondas de choque já começam a balançar a comunidade internacional dos antropólogos, que pela primeira vez se sentem investigados como selvagens. "Este livro sacode os alicerces da antropologia", avisa uma flecha disparada via internet para a presidência da Associação Americana de Antropologia. "Não é exagero dizer que este é, de longe, o caso mais escabroso em toda a história da Antropologia", escreve o professor Leslie Sponsel, da Universidade do Havaí, reconhecendo que o livro "expõe de maneira cândida e sistemática, com ampla documentação, os dados, interpretações e a ética dos antropólogos que construíram e divulgaram a imagem feroz dos ianomami".

Tierney farejou por mais de dez anos os rastros de Chagnon e a trupe de jornalistas, cientistas e charlatães que, segundo ele, formaram a comissão de frente da destruição da Amazônia. Não poupou sequer os críticos do antropólogo, como o etnógrafo francês Jaques Lizot, cujo trabalho na tribo serviu sobretudo para que recrutasse harém de meninos. Outros antropólogos, seguindo as pegadas de Chagnon, mantiveram durante décadas o costume de encenar lutas entre os índios para mostrar a visitantes sua belicosidade. E pesquisadores da Comissão de Energia Atômica inocularam o sangue dos inanomami com isótopos radioativos para estudar seus efeitos em condições ideais de pureza.

Foram os testes de radiação que, segundo Tierney, aproximaram os caras-pálidas daqueles índios. Marcel Roche, geneticista venezuelano formado nos Estados Unidos por conta da Agência de Energia Atômica, voltou ao país depois da Segunda Guerra para aplicar-lhes as primeiras injeções de isótopos. Atrás dele, chegou o geneticista James Neel, que compôs com Chagnon uma parceria ideal para promover os ianomami a animais de laboratório.

Neel era um profeta tardio da eugenia. Na selva venezuelana, sua crença no melhoramento genético da humanidade aparentemente o estimulou a patrocinar a campanha de vacinação que devastou a tribo. A vacina, do tipo Edmonson B, baseia-se num vírus tão agressivo que, mesmo em organismos carregados de anticorpos, só deve ser aplicada com cuidados especiais. Tudo indica que no caso eles deliberadamente contrariaram os aviso médicos. Depois que a epidemia se espalhou, deixaram de socorrer os doentes, por ordens de Neel, que proibiu os observadores de se comportar como agentes de saúde. Ele estava entre os ianomami em busca de evidências para a hipótese de que, em grupos primitivos, os machos abençoados com os genes da liderança matam mais inimigos e se acasalam com maior número de mulheres, contribuindo naturalmente para o aperfeiçoamento da espécie. Pelo visto, achava que o sarampo derrubaria de preferência os mais fracos, detendo-se diante dos mais fortes na barreira inata da superioridade genética.

Pode ser coincidência, mas Chagnon, que entrou em campo pelas mãos de Neel, acabou pintando os ianomami com um povo de guerreiros prolíficos, onde os homens mais briguentos acasalavam mais e geraram mais filhos. Em dupla, o antropólogo e o geneticista fizeram o estrago. Chagnon tornou os inanomami mundialmente famosos num livro que, apesar de acadêmico, vendeu mais de um milhão de cópias. E Tierney, antes de levantar sua trilha, escreveu sobre sacrifícios humanos em The Highest Altar, um livro que a National Geographic transformou em documentário para a televisão.

Um crédito ninguém tira do senador José Sarney. Treze anos atrás, quando ele estava na presidência da República e, vindos da Venezuela, os ianomami entraram em Roraima e na agenda social de seu governo, ele costumava dizer que aquela confusão toda tinha sido provocada por um "antropólogo picareta". Como ele advinhou, não se sabe. Mas estava falando sem dúvida de Napoleon Chagnon. [ 20.Set ]