Internet Source: Socioambiental.org, December 21, 2000
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O livro de Patrick Tierney, "Darkness in El Dorado" (Trevas em Eldorado - como cientistas e jornalistas devastaram a Amazônia), que vem despertando polêmica sobre critérios éticos e metodológicos em pesquisas de campo e reportagens feitas na Amazônia, é tema de artigo do antropólogo Marshall Sahlins, de nota publicada pela ABA e de um Parecer elaborado no Brasil por uma equipe de biomédicos da UFRJ com assessoria do antropólogo Bruce Albert
Febres de ódio ou cumplicidade, feridas abertas em várias reputações, mal estar generalizado e indisposição entre pares no meio acadêmico e jornalístico. Talvez uma epidemia de sarampo não seja uma analogia imprópria para a repercussão que vem tendo o livro do jornalista Patrick Tierney, Darkness in El Dorado - How Scientists and Journalists Devasted the Amazon, resultado de sua pesquisa de 11 anos na Amazônia e publicado no mês passado pela editora W. W. Norton.
Mais do que qualquer outro assunto abordado por Tierney, o cerne das acusações recaem sobre danos causados ao povo indígena Yanomami, habitante da Bacia Amazônica ao sul da Venezuela e norte do Brasil. Não é de hoje que denúncias sobre os efeitos nefastos do contato com o "branco" sobre os Yanomami repercutem na imprensa mundial. A partir da década de 60, epidemias e mortes dizimaram um imenso contingente de índios, resultantes da presença de missionários, garimpeiros, militares e operários na construção de estradas que cortavam seu território. O desconcertante é que Tierney introduz nessa lista de algozes figuras que deveriam constar no rol de defensores dos direitos indígenas: cientistas e jornalistas que atuaram junto aos Yanomami na Venezuela, como os antropólogos Jacques Lizot e Napoleon Chagnon, o geneticista James Neel e a rede televisiva BBC, para citar os exemplos mais notórios.
Sem incorrer em generalizações, Tierney afirma que se não fosse o trabalho de jornalistas e antropólogos comprometidos na defesa dos direitos indígenas, as aldeias da Amazônia poderiam ter sido exterminadas pelo garimpo e outros agentes. Suas acusações incidem sobre alvos precisos e, na maioria dos casos, o vírus de Tierney apenas escancarou feridas há muito abertas. No caso de Chagnon, por exemplo, há anos o antropólogo vem sendo criticado por outros estudiosos dos Yanomami nos Estados Unidos, como Kenneth Good, Brian Ferguson e, mais recentemente, Terence Turner e Leslie Sponsel. Estes dois antropólogos das universidades de Cornell (EUA) e do Havaí, respectivamente, enviaram carta a AAA (Anthropological American Association) repugnando as atitudes de Chagnon e elogiando o trabalho de pesquisa de Tierney. O documento foi veiculado na internet sem o consentimento dos autores e acabou gerando uma epidemia de e-mails e troca de acusações, corroborando para a divulgação da obra antes mesmo de seu lançamento no mercado, que ocorreu no dia 16 de novembro. Nessa data, a AAA realizava sua Reunião Anual em San Francisco (Califórnia, EUA), no qual Tierney foi convidado a participar e teve seu livro sabatinado.
Na sessão "Questões Éticas em Trabalho de Campo com os Yanomami" do encontro da AAA, a ABA (Associação Brasileira de Antropologia) fez-se representar por uma nota oficial lida pelo antropólogo Gustavo Lins Ribeiro (UnB), que teve grande repercussão entre os presentes e incentivou a criação de uma comissão especial para a investigação de acusações contidas no livro (leia a íntegra desses documentos ao final da matéria). A nota reitera críticas feitas pela antropóloga Manuela Carneiro da Cunha em 1988, quando era presidente da ABA, de que a obra de Chagnon serviu ao discurso do exército brasileiro - então responsável pela demarcação de Terras Indígenas -, que se valeu de uma suposta violência inerente aos Yanomami como justificativa para desmembrar seu território. Logo na introdução do livro, Tierney menciona essa carta de Carneiro da Cunha publicada na Anthropology Newsletter de janeiro de 1989. Nesse período, os estudiosos dos Yanomami Bruce Albert e Alcida Ramos também produziram vários artigos, veiculados no Brasil e nos EUA, contra as teses de que os Yanomami seriam assassinos inatos e seus usos políticos.
Mas os anticorpos da comunidade acadêmica não tardaram a reagir. A Academia Nacional de Ciências dos EUA, por exemplo, manifestou-se em defesa do geneticista James Neel. Samuel Katz, Nobel de medicina e responsável pelo desenvolvimento de vacinas contra sarampo, e David Glenn Smith, da Universidade da Califórnia, são outros casos de cientistas de renome que entraram no front contra Tierney. E, mesmo entre os adversários de Neel e Chagnon, Tierney vem sendo acusado de fazer descrições caricaturais e dar informações imprecisas, por vezes distorcidas, não comprovadas e contraditórias
Patrick Tierney na contracapa do livro Darkness in El Dorado
O eminente antropólogo Marshall Sahlins reconhece a falta de comprovação de algumas das acusações de Tierney, mas escreveu um artigo contundente, publicado no dia 10 de dezembro no jornal Washington Post, em que elogia o livro de Tierney por seu caráter revelador; em suas palavras, "ele soa como uma alegoria do poder e da cultura americana desde o Vietnã". Sahlins adensa as acusações do jornalista contra posturas éticas, metodológicas e teóricas de Chagnon. (No início do próximo ano, disponibilizaremos a tradução para o português desse artigo.)
No Brasil, uma equipe de especialistas em biomédica da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) foi constituída a pedido do antropólogo Bruce Albert (pesquisador do IRD/Paris e do ISA) e contou com sua assessoria para elaborar uma análise minuciosa dos episódios narrados no mesmo capítulo comentado por Sahlins, "The Outbreak" ("O Surto", cap. 5), em que a equipe de James Neel e Napoleon Chagnon é acusada provocar a morte de centenas de índios ao promover um programa de vacinação em 1968 contra uma epidemia de sarampo que acometia os Yanomami do Orinoco (Venezuela). Contudo, o Parecer da equipe volta-se primordialmente para as acusações feitas ao geneticista James Neel, enquanto Sahlins centra sua análise na figura de Chagnon.
A equipe médica da UFRJ baseou-se na documentação disponibilizada por Tierney e por instituições públicas e privadas do Brasil e da Venezuela, bem como nos artigos publicados por James Neel. Os resultados do estudo estão integralmente publicados no Parecer ao final desta página e apresenta conclusões sintetizadas no fim do texto.
Leia a versão original ou a tradução portuguesa das notas oficiais da ABA e da AAA;
Leia o Parecer elaborado pela equipe médica da UFRJ.
Valéria Macedo (ISA-SP, 21/12/00)
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